8 de dezembro de 2004

Liberdade

Eu estava na fila, não digo bicha para não haver confusões. Estava na fila nos correios. À minha frente estava uma negra com sotaque brasileiro plantada em cima de umas chinelas de salto alto. Chamam-lhes "mules". Para mim não passam de chinelos de salto alto e preço compatível, que as novas-ricas, desabituadas dos sapatos, inventaram para entrarem nos grandes salões. É o fascínio dos tapetes vermelhos e dos lustres de cristal repletos de lâmpadas, ou simplesmente os holofotes.Esta não, esta trazia estampado no rosto cansado o olhar triste de quem tinha acabado de sair de turno numa das muitas casas de alterne que Ponta Delgada viu abrir no último ano e meio. Também nesta área dos negócios, não houve excepção para confirmar a regra. Abre um e logo se aprontam mais três ou quatro para a concorrência. Mais tarde ou mais cedo fecham todas as portas.
Mas não foi para escrever sobre casas de alterne que me sentei à frente do computador. Bem sei que está na moda falar disso, até os Juízes já proíbem alguns arguidos de se darem com prostitutas e de frequentarem casas de alterne. Só no meu país é que isso acontece. Este é o verdadeiro drama, nem a corrupção é grande coisa nesse país de merda. Os árbitros compram-se com idas às putas. Puta que os pariu!
Ainda há quem diga que Portugal está cada vez mais próximo da Itália. Qual quê. Nós estamos é a anos-luz da grande Itália, uma das grandes potências económicas europeias, onde o povo se está borrifando para a estabilidade ou para a instabilidade e para a credibilidade dos políticos, o povo nem quer trabalhar, faz é o que tem que ser feito enquanto nós passamos metade do tempo preocupados com os outros e fazemos sempre o que não é necessário ser feito. Este episódio faz-me lembrar uma observação de um grande Homem que conheci que a respeito do seu filho dizia: "O meu filho é um grande trabalhador. Trabalha tanto, tanto, tanto, que não tem tempo para ganhar dinheiro". Assim está o nosso país, saímos de casa às 5 de Manhã perdemos horas nas filas e nos transportes, trabalhamos até às 18 chegamos a casa às 21 e no final das contas somos os mais pobres da Europa.
A meu lado uma jovem com pronúncia carregada queixava-se da pouca reforma que a mãe recebia e das tropelias da filha. A Pequena que não terá mais do que três anos, correu, saltou, pulou por cima dos bancos e das cadeiras, dos velhos e dos novos. Fez do átrio da estação de correios, pista de ski no gelo, pista de automóveis, trampolim e todo o mais. Sob o olhar atento e algumas repreensões da mãe, a rebelde criança de cabelos louros e pulseira de prata exprimiu ali, perante todos nós, a sua liberdade.
Mais ao lado, reservada, também loura mas "bem comportada" estava outra criança, aparentemente, com a mesma idade. A mãe falava para o lado com uma anciã numa língua que eu não entendia mas que não me era estranha, afinal, agora, somos visitados semanalmente por centenas de camionistas escandinavos, começamos a ficar familiarizados com as línguas daquela península do norte da Europa. Do outro lado duas velhinhas, à espera da sua vez para levantarem o vale com uma reforma de miséria, comentavam a diferença de educação das crianças.
Quando a mãe escandinava se dirigiu ao balcão por ter chegado a sua vez, reparei que trazia o filho por uma trela, como aquelas que usamos para os cachorros vira lata. Fiquei esclarecido.
Numa coisa batemos os outros a pontos, na nossa liberdade.

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