As teorias sobre a necessidade de organizar o Estado com base na separação de poderes, embora sejam atribuídas a Locke no Two Treatises of Government (1689) e a Montesquieu no seu L'Esprit des lois, publicado em 1748 são, porém, clássicas. Na verdade, já na antiguidade clássica Aristóteles de Estagira na sua mais divulgada obra, Politica, fazia menção a dois tipos de poderes ou duas realidades que se regulassem e arbitrassem uma à outra no governo de iguais por iguais, governo do Povo para o Povo ou democracia.
Na ordem jurídica portuguesa, a separação de poderes entra pela primeira vez na Carta Constitucional de 1826, a constituição portuguesa que mais tempo esteve em vigor sofrendo apenas quatro adendas embora promulgada pelo Monarca com o reinado mais curto da história de Portugal (ao fim de 7 dias, D. Pedro IV abdicou para sua filha D. Maria da Glória que viria a ser D. Maria II de Portugal).
O Estado Português é, constitucionalmente um Estado de direito democrático e isso, além de outras coisas, quer dizer separação de poderes, o Legislativo, directa e democraticamente eleito e representativo da Nação, o Executivo que emana do legislativo e serve para executar a leis por aquele formuladas e o Judicial, os tribunais, que são um órgão de soberania e não uma classe de funcionários públicos como por vezes parece e que serve, também para além de outras coisas, para arbitrar as questões que, legisladas e executadas o sejam de forma contrária às leis e ao espírito delas. Sejam normas plasmadas em diplomas de maior ou menos valor ou simples hábitos e costumes, o chamado direito consuetudinário.
Os autoritarismos e os totalitarismos, ainda hoje e à semelhança do passado, fundam as suas paredes na anulação de um ou mais desses pilares da democracia. Hitler, por exemplo, anulou o parlamento e só depois controlou os juízes. Deu no que deu. O mesmo se foi passando por essa Europa fora, com especial incidência na URSS de Estaline, na Itália do Duce Mussolini, na Espanha do Generalíssimo Franco e no Portugal de Salazar, isso para falar de um passado não muito próximo mas também não muito longínquo.
Nos nossos dias, nos países em que a democracia ainda não ganhou lastro como é o caso de Portugal, Itália, Espanha e nos casos mais gritantes de algumas repúblicas ibero-americanas, é costume os partidos no poder executivo, desconsiderarem os outros poderes como o dos parlamentos, desdenharem nos parlamentares, levando o Povo a direccionar os seus ódios ao Estado não para quem executa mal as leis e usa mal os recursos financeiros, mas para os seus mais directos representantes e eleitos ou que parece um contra-senso. É também hábito, nos governos com tendências autoritárias, a desconsideração e desacreditação do sistema judicial, a desvalorização do órgão de soberania que são os tribunais e a tentativa de manipulação do sistema.
As leis devem existir para garantia da liberdade e segurança dos cidadãos, não para os condicionar e amordaçar. Quanto mais independentes forem os tribunais e os Juízes mais garantias temos de que a nossa liberdade não vai ser beliscada.
Vem este já longo post sobre a separação de poderes, a respeito da notícia que li há dias no Económico sobre a tentativa do Governo de intervir junto do sistema judicial para ultrapassar a iniciativa que alguns grupos profissionais do funcionalismo público tomaram de desencadear mecanismos cautelares por causa do cortes nos salários. Vem também muito a propósito das declarações do advogado dos advogados sobre o mesmo assunto. A Ordem, como instituição não merece, obviamente, ser assim tratada.
Mais do que saber se os referidos cortes são constitucionais ou não, se estão dentro da lei ou não (se fossem efectuados por uma empresa privada seriam puníveis pelo código do trabalho e com grandes multas), importa garantir que caberá aos tribunais, na lógica da separação de poderes num estado de direito democrático constitucionalmente consagrado, decidir se sim ou não. Essa decisão não cabe nem ao Governo nem aos papagaios do regime, muito menos ao Sr. Bastonário.
O direito à justiça e à equidade no acesso à mesma, é constitucional, estão os grupos profissionais a fazer o que lhes compete, aos tribunais cabe decidir, ao Governo, neste caso, cabe-lhe apenas esperar pela decisão de outro órgão de soberania e agir em conformidade com o acórdão. Nem tudo pode ser feito em nome do interesse nacional, ou seja a bem da nação. Estava lindo.