Habituei-me a ouvir e a ler que Adam Smith teria defendido
que existe um mecanismo de autorregulação das relações entre os membros de
qualquer comunidade, de tal modo que, se ninguém interferir nelas, as
comunidades se organizarão espontaneamente pelo melhor. Seria a esse mecanismo
que se referiria a metáfora da “mão invisível do mercado”. Chamando-se então
“liberais” aos que acreditam na existência dessa “mão”, e “intenvencionistas” aos
que não confiam nela. Até que li algumas passagens do próprio Adam Smith. E
encontrei este professor de filosofia moral, na Glasgow de meados do séc. XVIII,
a defender quase o contrário.
Começando pela
passagem onde afirma que, se produtores num determinado mercado (o das
passagens aéreas, o dos serviços escolares, o dos cuidados médicos…) se
encontrarem por acaso numa qualquer sala, passados vinte minutos estarão a “conspirar”
(o termo é do autor) sobre como evitar a concorrência entre si, e como cada um
poderá oferecer o mínimo e pior possível pelo maior preço possível à população
fora dessa sala (v. A Riqueza das Nações,
Livro I, Cap. 10).
Ou seja, segundo Adam Smith, aquilo que é espontâneo
nas relações sociais em vista à obtenção de algo (dinheiro, destaque social…),
é a tentativa de destruição do mercado. Se há alguma “mão invisível” neste uma vez deixado à natureza, é na forma de punho
fechado, e no gesto de esmagamento.
O que porém a
história tem mostrado invariavelmente é que são muitos mais os perdedores, e bem
mais grave é a perda, nas comunidades que se deixam capturar pela meia dúzia de
“conspiradores” reunidos em tais salas – da URSS à atual Venezuela, passando
pela distribuição da riqueza na economia salazarista, isso tem sido invariável.
A liberdade individual, e o bem comum consistente –
isto é, que o preço do alívio imediato não seja uma longa desgraça a seguir –
são pois quais frágeis, e quase artificiais, flores de estufa. Para as quais há
que preparar a terra, semear, regá-las regularmente, mondar com persistência as
ervas daninhas que sempre se dispõem a abafá-las… Numa oposição firme à
natureza, que é intrinsecamente oligárquica, e como tal violenta, assim como globalmente
ineficiente (apenas propícia aos cogumelos cujas competências são, não as de
produzir, mas as de parasitar os restantes).
Seja por altruísmo de alguns agentes políticos (que a
antropologia personalista admite, mas que a psicologia evolucionista sustenta
não existir…), seja pela mera racionalidade que valoriza o pássaro na mão (a
garantia de alguma liberdade pessoal) em detrimento de dois a voar (um eventual
poder futuro sobre todos os restantes), seja por outra motivação qualquer, o
facto histórico é que a civilização ocidental rasgou aquela natureza violenta e
ineficiente ao criar o Estado acima de quaisquer pessoas. A estruturar, porém,
de forma a evitar o mais possível a sua captura por interesses oligárquicos –
em geral, esta forma tem sido a da separação dos órgãos que detêm os poderes
legislativo, executivo e judicial, e a liberdade de expressão.
Numa palavra, o Estado constitui a estrutura de uma
estufa, apenas dentro da qual a “mão invisível” se abre e, em alguma medida,
vai ajeitando procuras e ofertas. Essa estrutura justifica-se na proporção em
que é indispensável para se manter um mercado. O qual por sua vez, assim
enquadrado, é a melhor garantia da liberdade individual possível.
Por se orientar por este último valor – desde a
salvaguarda contra imposições religiosas, até condições para cada um criar o
alimento e alojamento próprios – o movimento histórico pontuado por Adam Smith,
antes dele por John Locke, depois por Tocqueville, etc., adotou o nome
“liberalismo”.
Foi nesta tradição que aqui argumentei a favor da
liberdade de cada pessoa em questões como a da eutanásia, ou do uso recreativo
de drogas ligeiras (salvaguardando os restantes a liberdade de não suportarem
os custos destas decisões individuais)…
Que trouxe a
esta coluna o contributo atual de José Octávio S. Van-Dúnem sobre o modo de
combater a captura do Estado por interesses privados na corrupção. Ou clássicos
como Fernando Pessoa a favor da globalização comercial, contra os “teoristas de
sociedades impossíveis”…
Que, no respeito pelas gerações futuras, defendi o
primado do equilíbrio das contas públicas. No respeito por quem tem poucas
posses, julguei que a liberalização das rotas aéreas açorianas só pecou por
muitíssimo tardia, e que falta ao menos discutir a das rotas inter-ilhas. No
respeito pelas pessoas concretas, reconheci a importância primeira do poder
local…
Em troca, não cheguei a criticar a atual obrigação dos
descontos para a Previdência Social se dirigirem totalmente aos atuais
pensionistas, e nem uma parte para o futuro de quem efetivamente os desconta –
de forma que pudéssemos acautelar hoje a possibilidade de amanhã haver muito
menos trabalhadores a descontar então para nós. Mas não, não temos liberdade de
gerir pelo menos parte dos nossos descontos.
Não cheguei a criticar a obrigação das pessoas e
famílias usarem os serviços que o Estado fornece em saúde ou educação. Em vez
do Estado apenas as apoiar financeiramente em proporção às posses delas, mas
deixando-as escolher a quem comprar esses serviços. Não, com um salário mediano
seguramente bem abaixo dos oitocentos e tal euros médios, a maioria dos
portugueses nem cheira essas liberdades.
E não tratei a má-fé dos decisores públicos fazerem
isso mesmo com a ADSE mas apenas aos seus funcionários no Estado – para que estes
sirvam aqueles caninamente? – enquanto aos trabalhadores privados, se não
contarem com rendimentos mensais de uns quantos milhares, resta a obrigação de
usarem precisamente os serviços do Estado que os funcionários do Estado podem
enjeitar. Não, esta liberdade não é para a grande maioria dos portugueses
comuns que entretanto sustenta o Estado.
Por tudo isso e mais, hoje em Portugal, nos Açores,
quase tanto como no séc. XVIII contra os monopólios e protecionismos do sistema
económico “mercantilista”, urge quem, como então Adam Smith (in Teoria dos Sentimentos Morais), se
constituam procuradores dos pobres, e defensores da liberdade comum contra as
explorações feitas por corporações que capturam os órgãos do Estado.
Dessa jardinagem em estufa, contra a selva natural, o
leitor decidirá – liberalmente! – se e como participará. Pela minha
pequeníssima parte, caber-me-á agora acompanhar interessada e criticamente as
intervenções do novo partido liberal que, como apontei na crónica de abertura desta
coluna, à época estava então em preparação. Mais as iniciativas no mesmo
sentido de quaisquer outras organizações sociais e, pontualmente, de outros
partidos políticos. Em particular, resta-me acompanhar o tratamento que Nuno
Barata Almeida e Sousa aqui entender dar às questões que entender abordar. Mais
eventualmente de quem me possa vir substituir nestas sextas-feiras, por certo
com vantagem. Agradecendo a Osvaldo Cabral a oportunidade que me deu de
participar, e à equipa do Diário dos
Açores a colaboração, nesta Coluna Liberal.