Um louvor do comunitarismo
À porta de eleições autárquicas, é oportuno realçar o
relevo que na tradição liberal se tem atribuído ao poder local, e
questionarmo-nos pelo seu sentido – eventualmente bem exemplificado no concelho
de Ponta Delgada por propostas de alguns atuais candidatos… tanto pela positiva
quanto pela negativa.
O relevo desse nível político numa sociedade liberal
foi reconhecido logo por Alexis de Tocqueville, na sua célebre viagem pelos
Estados Unidos da América em 1831/2.
Esse país era então composto pela união de 24 nações
soberanas, estando cada um destes Estados dividido em condados – administrativos
e judiciais – e, primeiramente, em comunas (townships).
As quais eram formadas pelos habitantes de cada
localidade, em vista à resolução das respetivas questões coletivas. No caso da
Nova Inglaterra, nesse primeiro nível político não se aplicava a lei da
representatividade, a democracia era exercida direta ou participativamente
pelos cidadãos. Entre os quais alguns eram aleatoriamente designados para,
durante um certo período, desempenharem as funções administrativas – talvez um
pouco como a responsabilidade por um condomínio a rodar pelos vários
inquilinos. Nomeadamente, a função de aplicar a repartição dos impostos, cujo
montante era estabelecido a nível estadual, mas conforme ao que fosse
determinado em reunião comunal aberta a todos.
Como Tocqueville salientou, a participação na comuna
constituía a raiz de uma atividade política orientada, nessa nova república
americana, da base para o topo. Em contraposição à orientação inversa que, nos
reinos europeus, permanecia do Antigo Regime.
Um século e meio depois da publicação de Da Democracia na América, uma
estimulante interpretação do sentido dessa organização política encontra-se na
obra do filósofo canadiano Charles Taylor (n. 1931).
O qual se opõe à tradição iluminista – assumida
eminentemente pelo liberalismo clássico – que concebe cada ser humano como
capaz de, por si só, equacionar e decidir racionalmente as alternativas que
enfrente. Para o que lhe bastaria a “liberdade negativa” (Isaiah Berlin) de não
sofrer constrangimentos ou obrigações externas – ex. impostas pelos órgãos
políticos.
Diferentemente, segundo Taylor, por um lado cada
pessoa constrói-se em correlação com as pessoas com quem convive. Este
comunitarismo não se confundirá porém – como o socialista ou o conservador –
com qualquer dissolução do indivíduo no grupo. Significa antes que é num
diálogo com os outros, tanto em acordo como em desacordo, que cada um se
apercebe e assume os valores que o orientarão.
Por outro lado, cada pessoa é “positivamente livre” se
tiver as capacidades – ex. autoconsciência, autocontrole, disponibilidade
física… – de expressar e realizar os seus desejos por aquilo que, naquele
diálogo, se lhe revela como bom. A alguém sem estas capacidades, se porventura for
poupado a quaisquer constrangimentos e obrigações externas a única liberdade que
terá é a de definhar e morrer.
Confesso que, do pouco que conheço os argumentos de
Taylor, tenho dúvidas sobre o seu êxito na tentativa de conciliar um “realismo
moral” – o bem de algumas ações não depende dos desejos, estes é que se
subordinam àquele – e o profundo condicionamento sociocultural que o autor
reconhece sobre cada indivíduo. Todavia deixarei esta questão em aberto, para aqui
registar apenas que, por esta via teórica, a participação comunitária terá o duplo
sentido de contribuir para a institucionalização de uma liberdade positiva, e
de se constituir como um meio (diálogo) privilegiado do participante se
construir eticamente.
Julgo que um exemplo positivo da participação
comunitária assim interpretada, no concelho de Ponta Delgada, tem sido o
orçamento participativo instituído pelo atual presidente da Câmara Municipal,
José Manuel Bolieiro, candidato pelo PSD a renovar o cargo. Decisões de dezenas
de milhar, dir-se-á, que quando se trata de dezenas de milhão o presidente
dessa autarquia decide à porta fechada, como na AMISM sobre uma incineradora de
resíduos sólidos para esta ilha… Mas já é melhor do que a anterior nulidade de
qualquer participação direta dos cidadãos.
Em troca, dizem-me que o candidato do PS à Junta de Freguesia
de S. Roque, Pedro Moura, está a repetir a sua receita de sucesso nas últimas
autárquicas, oferecendo churrascos, viagens de navio até S. Maria… Não será por
certo caso único. Mas todos estes fomentam a redução de capacidades íntimas
para a liberdade positiva, como a consciência crítica, o autocontrole contra a
indigência, etc., dos respetivos eleitores.
Exemplificando assim negativamente o sentido que
Charles Taylor reconhece na participação comunitária, que desde Tocqueville é
primeiramente valorizada na tradição política liberal.
Miguel Soares de Albergaria
Jornal Diário dos Açores Edição de 15 de Setembro de 2017
Jornal Diário dos Açores Edição de 15 de Setembro de 2017
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