16 de setembro de 2017

Coluna Liberal

Um louvor do comunitarismo

À porta de eleições autárquicas, é oportuno realçar o relevo que na tradição liberal se tem atribuído ao poder local, e questionarmo-nos pelo seu sentido – eventualmente bem exemplificado no concelho de Ponta Delgada por propostas de alguns atuais candidatos… tanto pela positiva quanto pela negativa.
O relevo desse nível político numa sociedade liberal foi reconhecido logo por Alexis de Tocqueville, na sua célebre viagem pelos Estados Unidos da América em 1831/2.
Esse país era então composto pela união de 24 nações soberanas, estando cada um destes Estados dividido em condados – administrativos e judiciais – e, primeiramente, em comunas (townships).
As quais eram formadas pelos habitantes de cada localidade, em vista à resolução das respetivas questões coletivas. No caso da Nova Inglaterra, nesse primeiro nível político não se aplicava a lei da representatividade, a democracia era exercida direta ou participativamente pelos cidadãos. Entre os quais alguns eram aleatoriamente designados para, durante um certo período, desempenharem as funções administrativas – talvez um pouco como a responsabilidade por um condomínio a rodar pelos vários inquilinos. Nomeadamente, a função de aplicar a repartição dos impostos, cujo montante era estabelecido a nível estadual, mas conforme ao que fosse determinado em reunião comunal aberta a todos.
Como Tocqueville salientou, a participação na comuna constituía a raiz de uma atividade política orientada, nessa nova república americana, da base para o topo. Em contraposição à orientação inversa que, nos reinos europeus, permanecia do Antigo Regime.
Um século e meio depois da publicação de Da Democracia na América, uma estimulante interpretação do sentido dessa organização política encontra-se na obra do filósofo canadiano Charles Taylor (n. 1931).
O qual se opõe à tradição iluminista – assumida eminentemente pelo liberalismo clássico – que concebe cada ser humano como capaz de, por si só, equacionar e decidir racionalmente as alternativas que enfrente. Para o que lhe bastaria a “liberdade negativa” (Isaiah Berlin) de não sofrer constrangimentos ou obrigações externas – ex. impostas pelos órgãos políticos.
Diferentemente, segundo Taylor, por um lado cada pessoa constrói-se em correlação com as pessoas com quem convive. Este comunitarismo não se confundirá porém – como o socialista ou o conservador – com qualquer dissolução do indivíduo no grupo. Significa antes que é num diálogo com os outros, tanto em acordo como em desacordo, que cada um se apercebe e assume os valores que o orientarão.
Por outro lado, cada pessoa é “positivamente livre” se tiver as capacidades – ex. autoconsciência, autocontrole, disponibilidade física… – de expressar e realizar os seus desejos por aquilo que, naquele diálogo, se lhe revela como bom. A alguém sem estas capacidades, se porventura for poupado a quaisquer constrangimentos e obrigações externas a única liberdade que terá é a de definhar e morrer.
Confesso que, do pouco que conheço os argumentos de Taylor, tenho dúvidas sobre o seu êxito na tentativa de conciliar um “realismo moral” – o bem de algumas ações não depende dos desejos, estes é que se subordinam àquele – e o profundo condicionamento sociocultural que o autor reconhece sobre cada indivíduo. Todavia deixarei esta questão em aberto, para aqui registar apenas que, por esta via teórica, a participação comunitária terá o duplo sentido de contribuir para a institucionalização de uma liberdade positiva, e de se constituir como um meio (diálogo) privilegiado do participante se construir eticamente.
Julgo que um exemplo positivo da participação comunitária assim interpretada, no concelho de Ponta Delgada, tem sido o orçamento participativo instituído pelo atual presidente da Câmara Municipal, José Manuel Bolieiro, candidato pelo PSD a renovar o cargo. Decisões de dezenas de milhar, dir-se-á, que quando se trata de dezenas de milhão o presidente dessa autarquia decide à porta fechada, como na AMISM sobre uma incineradora de resíduos sólidos para esta ilha… Mas já é melhor do que a anterior nulidade de qualquer participação direta dos cidadãos.
Cujo incremento é também positivamente exemplificado pelas propostas do candidato do partido Livre, José Manuel N. Azevedo. O qual, aliás, já se pronunciou a favor de alguma forma de democracia participativa ou deliberativa na decisão sobre aquela incineradora.
Em troca, dizem-me que o candidato do PS à Junta de Freguesia de S. Roque, Pedro Moura, está a repetir a sua receita de sucesso nas últimas autárquicas, oferecendo churrascos, viagens de navio até S. Maria… Não será por certo caso único. Mas todos estes fomentam a redução de capacidades íntimas para a liberdade positiva, como a consciência crítica, o autocontrole contra a indigência, etc., dos respetivos eleitores.

Exemplificando assim negativamente o sentido que Charles Taylor reconhece na participação comunitária, que desde Tocqueville é primeiramente valorizada na tradição política liberal.


Miguel Soares de Albergaria
Jornal Diário dos Açores Edição de 15 de Setembro de 2017

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