Imaginemos que o leitor resolve substituir o sofá da sua sala por uma tábua bonita montada sobre um
cavalete, com outra tábua perpendicular para encosto. E eu intervenho: “Não te
deixo fazer isso porque te vai fazer mal à coluna”. Ao que o leitor responde: “Mas
eu acho que a cor da madeira diz bem com o resto da minha sala, e só isso é que
me interessa…”. Então apresento relatórios de 9 em cada 10 ortopedistas a
confirmarem que o ângulo reto e a dureza fazem mal à saúde: “Cor ou não cor,
estraga-te a coluna, portanto não te dou licença para mudares o teu sofá na tua
sala”. E mantenho a proibição ainda que o leitor sugira pagar uma taxa superior
aos custos públicos que os seus futuros tratamentos ortopédicos possam ter.
Ou será que o leitor (supondo que não me mandava logo para
trás do sol posto) deveria ter dito apenas: “Não é da tua conta. Ponto final”?
Assim está o consumo recreativo de canábis. Nove em
cada dez neuropsicólogos dizem que causa perdas de memória, de controlo motor…
Mas eu, como liberal, simplesmente direi: Não é da conta das outras pessoas
além dos eventuais consumidores. Desde que antes se garantam três coisas:
Que o tetraidrocanabinol não estimula significativamente
a agressividade e a perda de autocontrolo, de forma que as pessoas, sob o seu
efeito, se tornassem efetivamente mais perigosas para a comunidade do que nos
seus estados normais de consciência.
Que, a haver custos de assistência e tratamento, nos resta
a liberdade de não pagar as consequências da escolha dos consumidores.
E que esta será feita tão esclarecidamente quanto
possível.
Relativamente à primeira questão, é sabido tanto neuropsicológica
quanto empiricamente que aquele efeito é próprio de drogas como o álcool, mas
não tanto da canábis.
Quanto à segunda questão, a coisa resolve-se e até a
favor do Estado (!) como com o tabaco: ponha-se-lhe uma taxa tal que ultrapasse
os custos públicos de quaisquer clínicas de reabilitação, mesmo de uma menor
produtividade – dadas as referidas perdas – e o resto da população só teria a
ganhar com a venda aberta desses outros cigarros, bolinhos e chazinhos.
Venda todavia condicionada à maioridade, e
acautelava-se a terceira questão.
Ah… mas quanto aos efeitos acima apontados ao álcool, por
favor não me entendam mal! Também já apontei nesta Coluna que nós liberais não
nos orientamos apenas pela prioridade do valor da liberdade individual. Além
disso, não assumimos como objetivo realista alguma resolução acabada de todos
os fatores sociais, fosse segundo um modelo passado – como os conservadores,
que suspiram “Antigamente é que era…” – fosse futuro – os “Amanhãs que cantam” anunciados
pelos socialistas.
Nesta humildade de ir tentando apenas a menos
desequilibrada organização possível a cada passo, de forma nenhuma estou
disponível para prescindir do meu meio copo de tinto do Douro em 365 jantares
por ano, e do meu (infelizmente) pouco frequente uísque irlandês sem água nem
gelo a estragá-lo, ou cálice de aguardente vínica a acompanhar a digestão de
algum jantar. Pois os belíssimos assados, bacalhaus de natas… com que a minha
mulher nos mima, apesar de todas as suas virtudes, perderiam bastante se não
fossem acompanhados por uns goles de vinho tinto. Nenhuma peça de jazz tocada
ao vivo, apesar de toda a virtuosidade dos músicos, soa tão bem como quando é
acompanhada por um copo daquele uísque…
Pelo que se um dia os médicos fizerem ao vinho o que
os dietistas parece estarem a fazer ao leite, e os seus prosélitos correrem à
minha porta para me proibirem aqueles bons hábitos, eu, no mínimo, lhes direi:
“Não é da vossa conta. Ponto final”.
As campanhas evangélicas dessas almas
bem-intencionadas decorre talvez de não se darem conta de que a realidade é
mais complexa do que os esquemas racionais em que pretendem espartilhá-la – “Há
mais coisas no céu e na Terra, Horácio, do que foram sonhadas na tua
filosofia”!
De modo que reivindico a manutenção de esplanadas ao
sol onde me possa sentar com um “fino”… apesar de assim me poder tornar mais
perigoso do que quem prefere partilhar um “charro” numa roda de amigos.
Se me descontrolar, caberá a estes outros pôr-me na
prisão. Se se tornarem eles indigentes, caber-me-á decidir se lhes dou o
rendimento mínimo, ou se os deixo na valeta. Até lá, cada um que se equilibre
como puder.
Este é um daqueles casos em que na prevenção – pela
proibição geral de consumos – creio perder-se mais do que na remediação – dos ocasionais
excessos.
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