Pouco assisti à investigação da SIC sobre (a alegada) corrupção
entre o Sr. Ricardo Salgado, de um lado, e os Srs. José Sócrates, Manuel Pinho,
Zeinal Bava… do outro lado. Mas o caso parece cheio daqueles episódios em que a
realidade ultrapassa a ficção. A ficção rasca. E como tal, confesso, acaba por
me interessar mais ir seguindo o FCP.
Todavia, no futebol, lá vem o Benfica e a operação
e-toupeira. Levanto os olhos aos céus… e logo tem de passar um avião na rota de
Lisboa, onde me lembro que viajará o Sr. Carlos César, ou a D. Berta Cabral, que
mal aterrarem irão receber o (legalíssimo) reembolso por essa viagem apesar de
ter sido a Assembleia da República a pagá-la, isto é, o leitor e eu. Tal como
aliás somos nós quem paga os reembolsos.
Não há como fugir à coisa.
Pelo que trago a estas páginas o livro que um antigo
colega de faculdade teve recentemente a amabilidade de me enviar: Sociedade e Estado em Construção: Desafios
do Direito e da Democracia em Angola (Coimbra: Almedina, 2012),
coorganizado por José Octávio Serra Van-Dúnem, particularmente o capítulo da
sua autoria cujo título importei para esta crónica.
Onde alarga a corrupção a práticas desde os subornos à
dispensa de favores particulares; desde a burla ao tráfico de influências;
desde a legislação a favor de interesses privados (ai a legalidade dos
subsídios dos deputados!) às relações promíscuas entre agentes privados e agentes
públicos (ai o complemento do ministro Pinho pago pelo GES!).
Em consequência, “a economia dilacera-se porque os
projectos e os negócios públicos não são estudados e desenvolvidos em função da
sua utilidade pública (…) mas sim tendo em conta as comissões e os rendimentos
que os agentes do processo vão ganhar (…). Ao nível social a corrupção agrava
as desigualdades entre os cidadãos (…) e degrada os valores morais, éticos e
profissionais” (p. 155).
A propósito dessa dilaceração económica: depois das notícias
ao longo da última década de nomeações políticas para a administração da Caixa
Geral de Depósitos, de empréstimos deste banco aos amigos e associados daqueles
diretores, e das consequentes notícias sobre a necessária recapitalização do
banco público, nesta semana o Eurostat anunciou que o défice orçamental
português, contando com essa recapitalização, se fixa em 3% do PIB – o segundo
pior da UE em 2017.
Mas saltemos sobre a estimativa de quão a corrupção
poderá pesar no desempenho económico, para registar dois apontamentos de Serra
Van-Dúnem sobre a adoção de uma “ética da responsabilidade”.
Por um lado, esta última decorre de pelo menos uma de
duas relações. A que se estabelece entre a ação e os respetivos resultados –
avaliando-se moralmente os agentes conforme os resultados das suas ações
respeitem, ou não, o compromisso que tais agentes tenham assumido para
desempenharem as respetivas funções. E a relação entre a ação e os valores que
a orientem, independentemente dos resultados – avaliando-se o agente conforme
se oriente no respeito pelo respetivo compromisso.
De modo que tanto a educação e formação profissional,
a montante das ações, quanto os processos de avaliação do desempenho, a jusante
deste, devem incidir nos valores que orientam as ações e/ou nas consequências
delas.
Por outro lado – à atenção do Senhor Presidente da
Assembleia da República – “a atitude que os órgãos adoptarem diante de casos de
corrupção será um primeiro sinal claro da preocupação com aquilo que pertence a
todos” (p. 158). Da preocupação… ou da falta dela, entenda-se.
Mas não apenas à atenção dos detentores dos cargos
institucionais. Referindo Bryan Turner, o nosso autor distingue a “cidadania
passiva”, a impor pelo Estado aos cidadãos, e a “cidadania activa, a partir ‘de
baixo’, como reforço das próprias Instituições” (p. 159). A preservação do
Estado de Direito – em que a lei está acima de quaisquer interesses privados –
cabe pois tanto àqueles a quem os restantes, provisoriamente, confiam os cargos
públicos, quer entretanto a todos estes outros.
Numa vigilância e intervenção “a partir ‘de
baixo’” que, como ao que julgo saber também será o caso do meu amigo José
Octávio em Angola, por cada pequena vitória pode bem sofrer umas quantas
derrotas. No entanto, desistir da cidadania ativa por causa destas, é não
perceber que o que primeiramente está em causa face à corrupção não é o estado
da res publica. É a escolha do que
cada um de nós quer vir a ver no dia em que, perante a morte, olhar para si
próprio e para este rápido e pequeno percurso de vida que aí nos terá levado.
Jornal Diário dos Açores 27 de Abril de 2017
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