Cumpriram-se nesta semana 92 anos sobre a publicação
de um dos contributos do (julgo) maior intelectual português de sempre – aliás,
o único nos nossos nove séculos que merecerá destaque mundial – a favor do
liberalismo económico: o artigo “A evolução do comércio”, publicado por
Fernando Pessoa no Nº 3 da Revista de
Comércio e Contabilidade, Lisboa, em 25/03/1926.
Cuja evocação abro com uma citação dedicada aos altermundialistas de hoje, aos socialistas
do Bloco de Esquerda, PCP, e PS+D’s que com eles geringonçam, mas igualmente aos
conservadores que rejubilam desde o brexit
às promessas de Trump: “A actividade social chamada comércio, por mal vista que
esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossíveis, é contudo um dos dois
característicos distintivos das sociedades chamadas civilizadas”.
Pessoa, que desenvolveu a sua carreira profissional
precisamente no setor comercial, reconheceu a cultura como o outro traço
distintivo da civilização. Entre os quais, argumenta, se estabelece tanto uma
relação “paralela” quanto outra de causalidade.
Para concluir com a primeira, toma como premissas que
“a vida é essencialmente relação”, entre povos, “quando [for] vida
civilizacional”. E que os “fenómenos da vida superior” são “materiais e
mentais”. Daí a conclusão intermédia: “devem ser materiais e mentais os
fenómenos da vida superior civilizacional; e (…) de relação”.
Ora, “o comércio é (…) uma entrepenetração económica
das sociedades”. Supondo a premissa implícita de que não haverá relação
económica maior – retira a segunda conclusão intermédia de que “é no comércio
que as relações materiais entre sociedades atingem o máximo”. Pessoa reduplica
em seguida este passo argumentativo para a cultura e as relações mentais.
O que permite a conclusão final de “que uma sociedade
com alto grau de desenvolvimento material e mental (…) forçosamente será
altamente comercial e altamente cultural, paralelamente”.
Mas afirma também a referida relação de “causalidade”
entre comércio e cultura (Pessoa usa aquele conceito de forma errada, ou pelo
menos discutível, referindo-se antes a “condicionalidade”, mas manterei o seu
termo). Como primeira premissa, assume que historicamente “o fenómeno material
precede sempre o fenómeno mental”. Segue-se diretamente a conclusão intermédia
de que “o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem-se formado
contactos materiais”.
À qual junta três premissas: “a cultura, ao
aperfeiçoar-se, tende (…) para não excluir da sua curiosidade elemento algum
estranho”. “Quanto mais fácil for o contacto com
elementos estranhos tanto mais essa curiosidade se animará”. E “a
cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacífico”. Portanto, “o
contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico”. E
carateriza-o numa última premissa: “é isto mesmo que, em contraposição à
guerra, distingue a actividade social chamada comércio”.
Daí a referida conclusão final da “causalidade” dessa
atividade sobre o aperfeiçoamento cultural.
“O estabelecimento, um pouco demorado desta analogia
ou paridade entre o fenómeno cultural e o comércio não é uma espécie de
degressão ou devaneio neste artigo (…). Visa, antes de mais nada, a mostrar
claramente a importância social do comércio, e a mostrá-la àqueles mesmos que
frequentemente a esquecem ou a negam. E como esses, em geral, são os que são ou
se julgam pessoas de cultura, o argumento, que se lhes opõe, é tirado das
próprias preocupações deles; responde-se-lhes na própria língua que falam ou
dizem falar” (F. Pessoa dixit).
Como “contraprova constante” do anterior argumento, o
autor propõe a verificação de um paralelismo entre “estádios” ou níveis de
desenvolvimento cultural e comercial ao longo da história. E precisamente
verifica-o. Para apontar ainda traços da fase que então se abria, sobre a
ciência económica e a sua matematização, a especialização na indústria e
comércio, o movimento sindical…
A dimensão destas minhas crónicas impõe interromper
aqui a leitura desse artigo – que o leitor porém facilmente continuará online. Mas
não acabarei sem antes apontar o que, para nós liberais, é mais importante do
que a liberdade comercial – invertendo aliás neste ponto a relação de
“causalidade” reconhecida por Pessoa, agora na primazia intelectual sobre
qualquer empreendimento ou reflexão económica, política, etc.: num perfeito
controlo mental, o autor de O Livro do
Desassossego, que aí exemplificou uma descrição minuciosa de vivências, exemplifica
aqui a argumentação lógica e a verificação empírica.
Sendo esta última forma racional e discursiva aquela
que se impõe na ponderação e decisão políticas. Esta é a primeira interpelação
de Pessoa aos que “se julgam pessoas de cultura”, e em geral a todos os
“teoristas de sociedades impossíveis”. A ver se, por esses caminhos, não assinalam o centenário desse artigo de Fernando
Pessoa, num não muito distante mês de março, alienando a civilidade da nossa
sociedade.
Miguel Soares de Albergaria, Jornal diário dos Açores 30 de Março de 2018
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