10 de junho de 2017

Coluna Liberal _ Hayek,Hayek Esse Diabo!

O título desta minha Coluna Liberal de hoje vem a propósito de um comentário de um leitor, atento e assíduo, ao meu artigo de há um mês. Sendo o primeiro intuito desta coluna esclarecer equívocos à volta dos conceitos e das práticas liberais, não só como ideário económico mas principalmente no campo da filosofia política à qual Hayek dedicou mais de metade da sua produção bibliográfica na segunda metade da sua vida adulta, nada mais apropriado para esta minha segunda crónica do que desmistificar a demonização que os grandes inimigos da liberdade insistem em materializar no Liberalismo. Foi precisamente na área da filosofia social e política que Hayek se afirmou como pensador do liberalismo contemporâneo, uma espécie de doutrina social e política indissociável da doutrina económica mas nunca tendente a as confundir nem sequer tendente a “disputar palco” com a Democracia. Hayek, em “Caminhos para a Servidão”, por exemplo, ou em “fundamentos para o Liberalismo” faz um apelo e constrói uma linha de raciocínio que nos leva à conclusão de que, na contemporaneidade, essa relação desconexa é, ao invés, de complementaridade. Tal como também defendeu Norberto Bobbio já no final da sua vida de sábio, o liberalismo, ou a sua aceção mais comum, corresponde a uma ideia das funções do Estado e dos seus limites de atuação que nos garantam proteção quer em relação ao chamado estado absoluto assim como em relação ao denominado estado social ou estado providência. Para Hayek, como para Bobbio, o Estado Liberal, em contraponto com o estado absoluto, do ponto de vista filosófico, é aquele que garante a não ingerência no gozo dos direitos naturais do individuo. Será então o Estado Liberal individualista? Claro que não, bem pelo contrário. Esse é o argumento utilizado pelos seus detratores, acusam os liberais de serem individualistas e avessos às questões do bem comum. Na verdade, a ideia de bem comum está sempre presente em toda a doutrina liberal desde a ascensão do Estado Liberal de XVII e XVIII até aos nossos dias , os caminhos para o alcançar é que são diferentes, são caminhos que se centram  na “inobjetibilidade”  do ser humano, na sua liberdade, criatividade e sentido de responsabilidade na vida do coletivo. No fundo o Estado Liberal recusa o Homem como um simples conjunto de matéria e recusa “cilindrar” a liberdade individual em nome de vagos interesses supostamente coletivos.
Hoje, a complementaridade entre o Estado Liberal e a Democracia de que nos falam Hayek e Bobbio em meados do século XX, são inegáveis, só os Estados Democráticos são, de facto, capazes de proteger as liberdades individuais assim como os estados totalitários são simultaneamente antiliberais e antidemocráticos. O Estado administrativo, tal como o conhecemos hoje, o estado que planeia centralmente através de normas e regulamentos, o Estado dos automatismos que retirou humanismo à administração em nome de uma maior clareza e imparcialidade é um Estado capaz de nos conduzir ao mais inequívoco estado de dependência e é, por isso, o grande inimigo e a mais forte ameaça política à liberdade individual. O Estado Administrativo Contemporâneo (expressão do autor), dos automatismos, das plataformas digitais e das decisões à distância de um click, ao contrário do que é afirmado pelos seus defensores, não nos protege das injustiças e das más opções e dos erros humanos, bem pelo contrário. Hoje, quando o humano erra a introduzir as informações num sistema automatizado, a culpa passa a ser da máquina e primeiro que alguém corrija esse erro tudo demora demasiado tempo, cronos esse que para os indivíduos pode não existir.
Hoje, sessenta anos depois de Hayek se ter  dedicado ao estudo das contradições e ao escrutínio do socialismo de então é importante esclarecer a diferença entra o Estado liberal e o Estado Social ou Estado Providencia  mas sem perder o rasto ou a esteira desse pensamento liberal do século que assistiu a duas grandes guerras mundiais e ao parto e morte dos mais vis totalitarismos.  O estado totalitário Socialista Soviético não foi menos castrador das liberdades individuais do que o foram os fascismos de Itália e Espanha ou o Nacionalismo de Salazar. O estado socialista soviético que aboliu as empresas privadas, nacionalizou a propriedade privada e concentrou no Estado os meios de produção e promoveu um sistema de “economia planificada” alicerçado em planos a cinco anos não é um estado que respeite as liberdades individuais nem sequer respeite as opções éticas de cada um enquanto individuo. Daí a grande contradição da esquerda contemporânea que tem a boca cheia da palavra liberdade mas a “alma” a transbordar de tiques totalitaristas e antidemocráticos dos regimes de então e de agora.

Publicado em Diário dos Açores, Ponta Delgada  9 de Junho de 2017







14 comentários:

José Azevedo disse...

Há tempos que ando para comentar esta vossa posição, porque acho que preciso de saber mais sobre o que defendem para poder consolidar a razão pela qual instintivamente dela discordo. Mas o bom é inimigo do ótimo, e em vez que um grande texto de argumentação, hei-de ir propondo pontos individuais de discussão. Neste caso, a definição de socialismo.
Parece-me fácil ligar os conceitos de socialismo e estalinismo, para colar a ambos a conotação negativa que justamente o segundo merece. É fácil mas não é correto. O socialismo é uma corrente de pensamento complexa que não se pode simplificar dessa maneira. Um dos valores do socialismo, quanto a mim, é a defesa dos interesses coletivos contra a sua apropriação por interesses particulares. O que a União Soviética fez (e a China está a fazer) é a usar o nome do socialismo para legitimar uma apropriação elitista dos recursos coletivos.
Em contraste, deixo aqui a interpretação do conceito de socialismo defendida pelo partido a que pertenço:
a "recusa da mercantilização das pessoas, do trabalho e da natureza, [...] no sentido de que seja conferida ao Estado a garantia de aplicação dos princípios de universalidade, liberdade e igualdade de oportunidades. Embora a ação governativa ou estatal seja crucial na criação de uma economia mista, em geral com três setores (privado, público e associativo/cooperativo), o nosso socialismo não é um estatismo."

Nuno Barata disse...

Caro Professor, desde logo aceita a minha expressão de gratidão por ter comentado este meu texto e seguir atentamente, como me parece, o que tenho escrito nesta coluna. na verdade, importa esclarecer que o "socialismo" que aqui é criticado por Hayek, não é o socialismo contemporâneo social-democrata, socialista democrático ou essa coisa a que alguém chamou de Terceira Via. O caso em estado reporta a meados do SEC.XX (1944) e como tal é nesse socialismo que nos devemos concentrar. No entanto, continuam a existir regimes socialistas do tipo soviético pouco ou nada democráticos nos dias de hoje, veja-se o caso do "Chavismo" de Angola a Coreia entre outros isso para não falar na China que é um caso esdrúxulo. Não tratei nem com facilitismo nem com falta de rigor a questão do socialismos soviético, bem pelo contrário, ficou bem claro que me referia ao pensamento de Hayek e à época.

A "recusa da mercantilização das pessoas, do trabalho e da natureza, [...] podia ser uma frase tirada de Fundamentos para o Liberalismo de Hayek, o autor recusa o Homem objecto transacionável, a destruição da natureza para fins económicos por se tratar do habitat natural do individuo, o Homem é parte da biologia não é estranho a ela. Os novos partidos e movimentos de esquerda estão muito mais perto do liberalismo do que dizem, porque só pensam em liberalismo econóomico classificando-o como um agente pernicioso da humanidade e usam esse termo sempre como pernicioso quando na verdade liberalismo é tão só sinónimo de liberdade. na verdade, é à regulação e à planificação que devemos o maior contributo para as desigualdades e para o fosso entre os mais ricos e os mais pobres e até para uma diferente perspectiva de oportunidades. Tenho muito gosto em conversar consigo sobre este assunto e demonstrar com factos e números as minhas razões, penso que no fim estaremos mais de acordo do que em desacordo.

Importa esclarecer, para melhor poder acabar de responder à sua questão, quando no fim refere que "o nosso socialismo não é um estatismo", a que socialismo se refere, é que já há tantos que não cabem nos manuais de ciência politica, são quase como as espécies de caracóis do Professor Frias Martins.

Abraço
Barata

José Azevedo disse...

Estamos de acordo quanto ao valor central da liberdade. Mas, tal como no tríptico francês, ela deve ser complementada por dois outros valores igualmente importantes: a igualdade e a solidariedade. Penso que é aí que divergem as conceções de liberdade da esquerda e da direita. Diria que a esquerda admite (ou requer!) restrições à liberdade individual quando está em causa a igualdade, entendida como igualdade de oportunidades mas também de equidade na distribuição de recursos. E nesse sentido discordo frontalmente da sua asserção de que "é à regulação e à planificação que devemos o maior contributo para as desigualdades e para o fosso entre os mais ricos e os mais pobres". Se esquecermos os rótulos, vemos que a planificação soviética foi uma forma de institucionalizar a desigualdade, não de a diminuir. Em nome do coletivo, criou-se uma oligarquia que explorava um sistema profundamente iníquo. Ora a corrente vaga de desregulação e desinvestimento na área pública (o neo-liberalismo) é a responsável pelo crescimento da desigualdade. Isso pode ser demonstrado empiricamente. Espero ter tempo em breve para documentar esta observação.
Um abraço.

Miguel Soares de Albergaria disse...

Caríssimos Nuno e José Manuel, contra nós os 3, aqui trago o link da crónica sobre livre-arbítrio e neurociências que há pouco enviei para o Correio dos Açores.
Nuno, como ali digo, para nós liberais é pouco menos do que um alçapão que se poderá abrir sob os nossos pés!...
Já o José Manuel escapará ao tombo se, no seu privilégio da "defesa dos interesses coletivos", adotar um pensamento sistémico - como a explicação socialista da dívida dos países do sul da Europa aos do norte, que resultaria de uma auto-organização do sistema e não da decisão dos que pediram e aceitaram os empréstimos... O problema passará a ser o do mecanismo de travão da derrapagem já nem só até ao estalinismo, mas a "agências de emprego" como a que hoje se associa ao nome "César", etc.

Miguel Soares de Albergaria disse...

Ah... felizmente voltei atrás!
http://miguelsoaresdealbergaria.blogspot.pt/2017/06/pessoa-entre-fervura-e-agua-fria.html

Anónimo disse...

Caro Miguel

Julgo que gostará de ler este pequeno livro. De facto, alguns resultados da Ciência Cognitiva parecem demonstrar que mente e mundo são inextricáveis. Esta constatação é particularmente problemática para a noção de que homem é essencialmente/fundamentalmente constituído pelas suas escolhas, qual barão munchhausen que se levanta a si próprio do solo...

O pensamento cartesiano, kantiano, husserliano (menos, porque, como sabe, Husserl nas Investigações Lógicas introduz o mundo como a priori absoluto, como facticidade) e liberal pressupõe o "agente autónomo" que se constitui através das suas escolhas. Ao evidenciar a importância primordial do mundo, a Ciência Cognitiva inadvertidamente corroi os fundamentos das teses (individualistas). Introduz o comunitário (o mundo compartilhado) como factor primordial da consciência (individual). O livre arbitrio não ocorre num vácuo criado pelo individuo.

Neste artigo o Nuno presume uma espécie de relação causal entre a regulação e o totalitarismo. Esta é, a meu ver, uma tese descabida. É lugar comum entre uma certa direita popularucha mas não me parece defensável. De forma alguma.


http://www2.econ.iastate.edu/tesfatsi/BeingThere.AClark1998.EntireBook.pdf


Não considero Hayek ou Friedman liberais no sentido filosófico. São-no no sentido económico mas as suas interpretações economicistas do ser humano e do próprio liberalismo são verdadeiras aberrações.

melhores cumprimentos

ezequiel

Miguel Soares de Albergaria disse...

Obrigado pelo link para o livro em PDF - já o descarreguei para o consultar quando puder.
E também pela referência concreta às Inv. Lógicas, tenho a 6a mas nunca li. Procurarei a formulação de "mundo", que me interessa particularmente... ainda que um "a priori absoluto" me soe hegelianamente - num artigo académico escrito quando era estudante denunciei uma contradição nos fundamentos hegelianos...
O seu comentário leva-me assim a retomar (como se isto fosse possível! ) alguma juventude!

Anónimo disse...

o termo (absoluto) é meu, acho eu...mas Husserl elabora a questão do mundo sem cair no erro de "absolutizar" seja o que for

tenho as Investigações em Inglês.


eu também sou céptico em relação a "absolutos "(e reconheço o seu papel na génese dos totalitarismos, a crença na infalibilidade, a visão "global" da terceira pessoa etc)

mas, confesso que neste contexto o termo absoluto não me parece descabido ou perigoso...no sentido em que qualquer consciência (significante) de si pressupõe a existência de um mundo.

Teríamos consciência do eu pensante sem um mundo social?? Em que pensaria o individuo sem sociedade de Maggie? O eu cartesiano ou Hayekiano/Friedmaniano pode existir sem uma sociedade?

Talvez a juventude seja mais sábia do que a velhice, Sr. Professor. Presumo que esteja a revisitar alguns livros lidos mas negligenciados.

Saúde e bom fim de semana

cumps
z





Anónimo disse...

http://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/papers/2006/P3244.pdf

José Azevedo disse...

A esta interessante discussão traria o elemento evolutivo: a hipótese das bases sociais da evolução da inteligência. A proposta é que a inteligência dos primatas se desenvolveu um simultâneo com a construção de um modo de vida social, com hierarquias de domínio entre indivíduos e de recursos. Desta dualidade entre interação social e inteligência ambas se desenvolveram a ponto de conferir a uma das espécies de primatas um poder inaudito sobre a biosfera. Para aqui importa salientar que a humanidade é inteligente porque é social e que, portanto, o conflito entre liberdade individual e compromissos sociais vem de antes da evolução da nossa própria espécie.

Anónimo disse...

José Manuel

boa tarde

parece-me sensato não interpretar a realidade a partir de imperativos morais (por ex., procurar na ciência "factos inquestionáveis" que demonstrem a falsidade/verdade do individualismo liberal (o agente q delibera autonomamente) ou do comunitarismo. não se deve começar pelo fim (pela crença normativa de que X deve ser Y)

assim a investigação é moldada por uma conclusão

nunca acreditei na dicotomia individuo/comunidade, uma dicotomia que molda toda a filosofia política (é o seu principal eixo, digamos assim).

eu não me aventuraria a dizer que a "humanidade é inteligente porque é social" (podemos supor, acho eu, que um ser humano que nunca tenha vivido em sociedade poder ser inteligente). Diria, mais modestamente, que a sociedade é a condição da possibilidade do individualismo e que a sociedade nem sequer seria possível se alguns atributos inatos do indivíduo (hardware universal cognitivo que permite falar uma língua, por exemplo..Noam Chomsky)

repare no seguinte: o hardware cognitivo que permite a invenção de linguagens é uma coisa (este dado é citado pelos individualistas)

mas

a linguagem como experiência social e comunitária é de outra natureza (não individualista)...para começar temos de falar com alguém (termos genéricos) com uma gramática e semântica mais ou menos compartilhada para que a actividade referencial (os objectos do mundo etc) seja bem sucedida. até Searle (dos actos de fala) fala do "background" dos actos de fala. curiosamente NUNCA explora este background. Dreyfus fá-lo de forma magistral no seu What Computers Still Can't do

de certa forma, a comunidade, o social (a linguagem, tradições, etc) é a condição da possibilidade do desenvolvimento (social) da inteligência da mesma forma que o hardware cognitivo universal é a condição da possibilidade da CAPACIDADE para comunicar ("capacidade para" é coisa distinta de "exercício de")

a antagonismo entre comunitaristas e liberais individualistas é uma falácia (e não é certo que Mill, apesar de defender a não interferência injustificada ou excessiva do estado na vida de cada um, NUNCA defendeu o individualismo radical de hayek ou de friedman

aliás, bem vistas as coisas, a concepção da natureza humana de Mill não tem nada, nadinha, zero, zieltsche que ver com o individualismo de hayek e de friedman. espero que o Nuno não diga que o hayek/friedman não são individualistas!!! os próprios reconhe

é isto que acontece quando os economistas julgam-se filósofos e quando os incautos tratam economistas como filósofos.

cumprimentos
ezequiel

Anónimo disse...

correcção

estou no meu telemovel

podemos supor, acho eu, que um ser humano que nunca tenha vivido em sociedade possa ser inteligente)

Miguel Soares de Albergaria disse...

Sim, o conceito “inteligência” não se refere exclusivamente ao homo sapiens – vai dos peixes à intel. artificial. Pelo menos quanto aos seres vivos, a teoria evolucionista será assim relevante. Daí o caso do movimento dos cardumes que acabei de usar nesta outra resposta a uma observação do José Manuel:
http://miguelsoaresdealbergaria.blogspot.pt/2017/06/pessoa-entre-fervura-e-agua-fria.html#comments
Uma correlação porém entre desenvolvimento da inteligência e sociedade não poderá esquecer os casos de animais eminentemente solitários – diversos felinos, etc.

Anónimo disse...

Miguel, um caso interessante, o dos felinos.

Aprendem a caçar enquanto crescem (especialmente quando brincam) com os progenitores ou são capazes de aprender a caçar por si????????

Deixo aqui um vid do meu bichinho preferido.

Bom dia para todos.

https://www.youtube.com/watch?v=cPRRf5zNCGg

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