Rufina é uma bela e contagiante
história de tantas e tantas mulheres destas ilhas repletas de partidas e
regressos, muitíssimo bem contada e adjetivada pelo Miguel Soares de
Albergaria. Como o próprio diz, entre a realidade e a ficção, Rufina, chegada à
ilha aos 25 anos de idade vai contando a história e caracterizando a sociedade
micaelense que encontrou num espaço temporal de meio século na transição de XIX para XX.
Francisco Luís Tavares, politico, advogado, Juiz, pensador é o personagem
principal deste romance que começa com uma sua carta dirigida à mãe pedindo-lhe
ajuizados conselhos na questão da greve académica de 1907 e termina com a
avisada resposta dessa mulher “que soube construir uma vida como a sua”.
Rufina, Srª D. Rufina de Mel(l)o
Tavares, sobrevivente de uma de tantas casas de desvalidos, uma dessas grandes
“latrina onde a sociedade escondia as sobras” é um hino à perseverança, uma
apologia do trabalho, uma ode à libertação da mulher não pelo reclamar
constante de direitos mas pelo exercício efetivo da cidadania, um tratado da
libertação e da conquista pela força da razão e com a graça de Deus.
Tantas Rufinas há e quantas ainda
estão para nascer mesmo neste século XXI da cibernética e do multiculturalismo?
O presépio da tias Jacinta e
Abigail, ou melhor, a montagem deste e a discrição das suas figuras, mandadas
fazer e pintar a preceito e a jeito, a disposição dessas mesmas figuras
estrategicamente entre patamares devidamente separados e estratificados,
constitui um retrato, uma crónica costumeira de Ponta Delgada e São Miguel no
final do século da laranja e transporta o leitor para a época deixando-nos
embrenhar no cheiro dos laranjais, no bafo húmido e asfixiante de uma estufa de
ananases acabada de receber fumo. Um livro, tem que ter esta capacidade de nos
transportar, de nos fazer revisitar, este atributo único de ser uma espécie de
máquina do tempo em regressos ao passado e ao futuro.
Sem recurso ao grotesco ou à
violência ou sequer ao sexo gratuito, coisa que até poderia ter acontecido se
atentarmos à realidade desse tempo em Terras e Vera Cruz , o Miguel Albergaria cativa-nos
enquanto leitores transportando-os para a época contando-nos, “romanceadamente”
e de um ponto de vista sociológico, um pouco, bastante, da história das
estórias que ouvimos contadas dos nossos avós nesta cidade de Ponta Delgada e
da sociedade micaelense de então. Longe de ser um grande romance histórico é um
bom romance com histórias das nossas estórias. O “dinheiro velho” em
contraponto ao “dinheiro novo” da Laranja e de como uma certa burguesia se
aristocratizou. A forma rude e severa como a sociedade, infelizmente ainda
hoje, idolatra ou despreza um ser humano pelo volume da sua carteira ou pelo
cargo que ocupa num serviço publico. O nascimento e a ascensão do Doutor
Francisco Luís Tavares (bisavô do autor), figura incontornável da primeira
metade do século XX micaelense quer na consolidação da República da qual foi
Deputado Constituinte quer na oposição ao regime musculado do Doutor Oliveira
Salazar.
Há, por fim, ao longo de todo o
romance uma presença permanente da família como núcleo centrifugo e uma
apologia da mesma como garante não só da estabilidade emocional dos que dela
necessitam como também da força e do apoio que o ser humano requer para vencer
as desventuras e as adversidades da vida terrena. Deus e a Família foram o suporte
desta Rufina que o Miguel Albergaria, a bom tempo, resolveu trazer aos
escaparates pela mão da Companhia das Ilhas. Anthero, o Santo Anthero,
revolucionário e racionalista também lá está.
Bem hajas meu amigo.
2 comentários:
Obrigado pelas tuas palavras pessoais.
E mais obrigado ainda por explicitares algumas notas que particularmente valorizo nas entrelinhas desta minha (!) novela (talvez pequeno romance). Mas ainda mais por desenrolares uma ou outra pista interpretativa que pela minha parte possivelmente não seguiria,
e assim se autonomizar esse texto do seu autor, bem como de qualquer intérprete especial - assim deixar de ser "minha".
Que só neste destino se cumpre enfim uma obra.
Nada tens que agradecer, Meu caro Miguel. Penso que ainda ficaram umas coisas por escrecver mas eu sou assim, repentista e não revisiono muitas vezes os textos.
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