Desde as carteiras da cabulice no ensino básico, de
truque nenhum se esqueceu a grande maioria dos nossos deputados à Assembleia da
República. A espera pelo virar de costas do professor, para então rapidamente avançarem
revisões à lei do financiamento dos partidos; o uso de siglas anónimas nos
bilhetinhos, como as letras A, B e C em vez da identificação partidária nas
propostas de lei; o extravio de quaisquer atas ou relatórios que esclarecessem
a autoria das ideias mais luminosas… Seria até enternecedor tanta juvenilidade,
não fossem neste caso truques de carteirista.
Pelo que a nossa costela securitária nos leva a
ponderar: com gente desta, se calhar o melhor seria fechar de vez o estaminé
(leia-se: a A.R.).
Ao que a costela racional tem porém de objetar: será melhor,
se o valor da democracia liberal – aquela em que cada cidadão detém um voto
para participar nas decisões coletivas – depender da seleção dos mais competentes
e honestos; ou se, principalmente, houver alternativa menos má.
Mas a nossa costela de cultura geral logo nos desfaz estas
ilusões. Comecemos pela segunda.
Na ânsia de segurança contra carteiristas e afins,
seríamos então tentados a fechar o acesso ao primeiro sítio que faculte o
roubo: aquele onde se possa legalizá-lo – mais precisamente, ao roubo pelos
poucos que acedam a tal sítio a todos os restantes.
Em resultado, tanto o poder legislativo quanto o de
fiscalizar o poder executivo teriam de passar para outros órgãos – governo,
Presidência da República… Que assim os acumulariam com os poderes que já
tivessem. O que constituiria um reforço da respetiva autoridade. Porventura ao
ponto de abrir as portas a um regime autoritário.
Os quais, historicamente, têm apresentado pelo menos
um problema: do Hitler que prometeu um Reich de 1000 anos e o destruiu em 12,
ao Mao Tsé-Tung que, com uma ideia disparatada sobre sementeiras e outra sobre
coletivizações, fez matar à fome dezenas de milhões de chineses, passando pela
simples cleptocracia (segundo o Financial
Times) angolana, frequentemente quem acaba por acumular os poderes
políticos é muito pior do que quem os detém nos regimes democráticos.
Com certeza que resta uma pequena probabilidade de
acontecer o contrário. O problema que se coloca aos suspirosos por um líder que
sonham à medida deles é que, no autoritarismo, precisamente esse seu sonho não
conta nada, isto é, não serão chamados à escolha do tal líder. Ficam pois
entregues à sorte. Mais, não serão chamados à escolha do presidente da junta –
que ficará livre para adjudicar todas as obras ao cunhado – à escolha do chefe
da polícia, que há de ser vizinho de alguns desses suspirosos, e que ficará
livre para multar todos os carros da rua para estacionar o seu onde lhe
apetecer…
E depois há um outro problema, ainda que só para quem se
realiza ao andar sobre as próprias pernas, de espinha direita e por onde
decida, em vez de ser levado pela trela, posto de quatro e em manada. Mesmo
quando o tal líder governe como aqueles primeiros homens quereriam, estes reivindicam
o poder tanto de o aprovar, quanto de o desaprovar e lhe retirar o cargo,
quanto ainda de se candidatarem eles se assim o entenderem.
Sem boa alternativa à democracia liberal, naquela
ânsia por segurança arriscamo-nos a cair no desânimo e conformismo – demissão
que também abre a porta aos autoritaristas. Contra isso, porém, se volta a
erguer a costela da cultura geral.
Pela qual sabemos que nunca na democracia liberal
houve a primeira ilusão atrás mencionada – a de que por esse regime estabeleceríamos
o governo pelos mais competentes e honestos. Com efeito, desde o início do séc.
XIX, com o relato de Tocqueville da jovem experiência norte-americana, sabemos
bem que a democracia liberal não só não garante esse objetivo, como normalmente
constitui mesmo um obstáculo ao seu cumprimento. Ou seja, se uma pessoa é
eleita repetidamente, então é pouco provável que se distinga pela competência e
honestidade.
Mas este regime, em troca, faculta uma solução historicamente
testada a esse seu defeito, evitando assim a queda na alternativa autoritária: a
mútua limitação e condicionamento institucional dos poderes políticos (legislativo,
executivo e judicial). E a defesa intransigente da independência da comunicação
social – evitando monopólios, bem como a dependência das empresas do sector
face ao poder executivo – mais a liberdade das redes sociais.
Miguel Soares de Albergaria, Diário dos Açores edição de 5 de Janeiro de 2018
Miguel Soares de Albergaria, Diário dos Açores edição de 5 de Janeiro de 2018
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