6 de janeiro de 2018

Coluna Liberal- Diário dos Açores -2018.01.05

Desde as carteiras da cabulice no ensino básico, de truque nenhum se esqueceu a grande maioria dos nossos deputados à Assembleia da República. A espera pelo virar de costas do professor, para então rapidamente avançarem revisões à lei do financiamento dos partidos; o uso de siglas anónimas nos bilhetinhos, como as letras A, B e C em vez da identificação partidária nas propostas de lei; o extravio de quaisquer atas ou relatórios que esclarecessem a autoria das ideias mais luminosas… Seria até enternecedor tanta juvenilidade, não fossem neste caso truques de carteirista.
Pelo que a nossa costela securitária nos leva a ponderar: com gente desta, se calhar o melhor seria fechar de vez o estaminé (leia-se: a A.R.).
Ao que a costela racional tem porém de objetar: será melhor, se o valor da democracia liberal – aquela em que cada cidadão detém um voto para participar nas decisões coletivas – depender da seleção dos mais competentes e honestos; ou se, principalmente, houver alternativa menos má.
Mas a nossa costela de cultura geral logo nos desfaz estas ilusões. Comecemos pela segunda.
Na ânsia de segurança contra carteiristas e afins, seríamos então tentados a fechar o acesso ao primeiro sítio que faculte o roubo: aquele onde se possa legalizá-lo – mais precisamente, ao roubo pelos poucos que acedam a tal sítio a todos os restantes.
Em resultado, tanto o poder legislativo quanto o de fiscalizar o poder executivo teriam de passar para outros órgãos – governo, Presidência da República… Que assim os acumulariam com os poderes que já tivessem. O que constituiria um reforço da respetiva autoridade. Porventura ao ponto de abrir as portas a um regime autoritário.
Os quais, historicamente, têm apresentado pelo menos um problema: do Hitler que prometeu um Reich de 1000 anos e o destruiu em 12, ao Mao Tsé-Tung que, com uma ideia disparatada sobre sementeiras e outra sobre coletivizações, fez matar à fome dezenas de milhões de chineses, passando pela simples cleptocracia (segundo o Financial Times) angolana, frequentemente quem acaba por acumular os poderes políticos é muito pior do que quem os detém nos regimes democráticos.
Com certeza que resta uma pequena probabilidade de acontecer o contrário. O problema que se coloca aos suspirosos por um líder que sonham à medida deles é que, no autoritarismo, precisamente esse seu sonho não conta nada, isto é, não serão chamados à escolha do tal líder. Ficam pois entregues à sorte. Mais, não serão chamados à escolha do presidente da junta – que ficará livre para adjudicar todas as obras ao cunhado – à escolha do chefe da polícia, que há de ser vizinho de alguns desses suspirosos, e que ficará livre para multar todos os carros da rua para estacionar o seu onde lhe apetecer…
E depois há um outro problema, ainda que só para quem se realiza ao andar sobre as próprias pernas, de espinha direita e por onde decida, em vez de ser levado pela trela, posto de quatro e em manada. Mesmo quando o tal líder governe como aqueles primeiros homens quereriam, estes reivindicam o poder tanto de o aprovar, quanto de o desaprovar e lhe retirar o cargo, quanto ainda de se candidatarem eles se assim o entenderem.
Sem boa alternativa à democracia liberal, naquela ânsia por segurança arriscamo-nos a cair no desânimo e conformismo – demissão que também abre a porta aos autoritaristas. Contra isso, porém, se volta a erguer a costela da cultura geral.
Pela qual sabemos que nunca na democracia liberal houve a primeira ilusão atrás mencionada – a de que por esse regime estabeleceríamos o governo pelos mais competentes e honestos. Com efeito, desde o início do séc. XIX, com o relato de Tocqueville da jovem experiência norte-americana, sabemos bem que a democracia liberal não só não garante esse objetivo, como normalmente constitui mesmo um obstáculo ao seu cumprimento. Ou seja, se uma pessoa é eleita repetidamente, então é pouco provável que se distinga pela competência e honestidade.

Mas este regime, em troca, faculta uma solução historicamente testada a esse seu defeito, evitando assim a queda na alternativa autoritária: a mútua limitação e condicionamento institucional dos poderes políticos (legislativo, executivo e judicial). E a defesa intransigente da independência da comunicação social – evitando monopólios, bem como a dependência das empresas do sector face ao poder executivo – mais a liberdade das redes sociais.

Miguel Soares de Albergaria, Diário dos Açores edição de 5 de Janeiro de 2018

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