Dizer que a eleição do ministro das finanças português
para a presidência do Eurogrupo trará vantagens significativas a Portugal
constitui mais uma daquelas anedotas: “Vai um alemão, um francês e um português
num avião, um dos motores começa a arder…”, e safa-se o espertalhão lusitano
por convencer os outros a desgraçarem-se por cumprirem as regras, enquanto ele
toma estas últimas apenas como papas e bolos para enganar tolos.
Alguém concebe que, se cargos como aqueles pesassem a
favor dos países natais dos respetivos detentores, dois em cada três deles não
seriam alemães, e o terceiro francês?
Tendo assim a apostar que o Doutor Mário Centeno foi
esta semana adotado como porta-voz dos interesses económicos da França, que
enjeitou o socialismo nas últimas legislativas, e da Alemanha, que mantém como
chanceler a Sra. Merkel em cuja fotografia muitos apoiantes do governo de que
ele continua ministro ainda há pouco pintavam bigodinhos à Hitler.
O que estabelecerá, na própria maioria que sustenta o
executivo português, uma tensão entre as respostas às duas perguntas com que
Isaiah Berlin abriu o seu célebre ensaio de 1969, “Two concepts of liberty”.
Qual é a área de ação em que alguém deve ser deixado
livre de interferências alheias? A resposta a esta pergunta determina o que Berlin
chamou “liberdade negativa”. Ou “liberdade de” ações, sejam de pessoas, de
instituições ou do Estado, que impeçam cada sujeito de ser ou de fazer o que
lhe for natural. Não é fácil definir essa natureza, mas, grosso modo, poderemos
aceitar como tal a assunção e expressão de quaisquer ideias (que não acarretem
a destruição de outrem).
A liberdade negativa será tanto maior quanto menos
interferências houver sobre estas escolhas e comportamentos. Por exemplo, as
famílias e empresas portuguesas serão tão mais livres negativamente quão menos
o novo ministro das finanças alemão interferir na nossa economia.
Desde
J. Locke, A. Tocqueville, B. Constant, J.S. Mill (séc. XVII-XIX)… os liberais têm
porém alertado que a liberdade negativa absoluta constitui uma selva
socioeconómica em que os que alcançam algum poder logo o podem usar para
retirar aos restantes qualquer liberdade.
Pelo que, com I. Berlin, se deve perguntar também qual
ou quem será a fonte da interferência que pode determinar alguém no que este é
ou faz. Determinando-se a “liberdade
positiva”, ou “liberdade para” cada pessoa ou povo se comandar a si próprio.
Melhor dizendo, com Mill: …para o povo ser comandado
por aqueles poucos que dizem fazê-lo
em nome dele – a razão desta correção é ilustrada desde Estaline, ou os
jacobinos, até ao governo chefiado por um avençado do Grupo LENA.
Facilmente se percebe que esta liberdade positiva estabelece
alguma tensão com a anterior – por exemplo, se alguém não comer não terá poder
para se autodeterminar; mas, para alimentar os filhos de um indigente, será
preciso ir retirar riqueza a quem a tenha, interferindo assim com a liberdade
negativa destes outros.
Temos duas formas de lidar com essa tensão, como aliás
com qualquer outra.
Uma forma é a de qualquer das suas duas dissoluções.
Seja a reivindicada pela deputada Mariana Mortágua na Conferência Socialista de
2016 em Coimbra: “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir
buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro”. Robespierre não diria melhor…
Pelo que, até a bem da Dra. Mortágua, desejo-lhe um saudável falhanço. Seja a
da referida selva, contra a qual aqui sigo os liberais clássicos.
Como Berlin magistralmente explicita, os próceres de
qualquer dessas dissoluções presumem um mundo absolutamente resolvido. O que não
é bem aquilo que a observação do mundo nos faz acreditar… Pelo que, juntamente
com este filósofo e cavaleiro do reino britânico, fico à espera do argumento a
priori que garanta a possibilidade de tal resolução.
Enquanto não no-lo apresentam, resta-nos humildemente
a outra forma de lidar com a tensão entre a liberdade positiva e a negativa:
integrá-la. Ou seja, aceitar que a imperfeição faz parte da vida, e ir tentando
retificá-la, diminuí-la, caso a caso.
Designadamente, evitando seja o excesso, positivo, de
uma governação federalista da UE, que colocaria todo o poder nas mãos daqueles
poucos cuja voz agora será difundida pelo Doutor Centeno. Seja o excesso,
negativo, de uma desregulação europeia que permita, por exemplo, que quaisquer
avençados conquistem o poder político para melhor oprimir o povo.
Esperemos que a propalada arte de negociação do Dr.
António Costa seja real, de modo a mantermos alguma concertação entre políticas
que implementem uma e a outra liberdade. Como Isaiah Berlin e os liberais
clássicos aconselham.
Miguel Soares de Albergaria, in Diário dos Açores 2017.12.08
1 comentário:
Caro Miguel
A liberdade positiva é a liberdade para, como dizes. Pena que não aprofundes a análise
do conceito. O conceito de "liberdade de" é absurdamente simples mas a "liberdade para"
pressupõe a existência de condições sociais para agir.
A esganiçada da Mortágua provavelmente simpatizaria com a liberdade positiva. :)
Alguns aspectos da liberdade negativa podem ser ilustrados com a lenda do Barão Muenchhausen
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3b/Muenchhausen_Herrfurth_7_500x789.jpg
O homem que consegue levantar-se a si próprio, solo. A auto-determinação absolutizada e transformada em mito.
O self-made man, o homem performance, o homem tudo ou nada...
Lindo...mas não passa de um mito, tão pernicioso nos seus efeitos políticos como a ideia de que o homem é um ser
intrinsecamente, necessariamente e inteiramente social. São dois determinismos, reversos da mesma moeda. De um lado, o totalitarismo da colectividade indelevelmente inscrito na concepçao social do homem. Do outro, o totalitarismo atómico da sociedade pós-moderna repleta de indivíduos estrela que celebram as suas virtudes e confessam os seus defeitos nos confessionais foleiros da TVi. Um dilúvio de individuos ignorantes, o declínio da própria individualidade (marcuse).
Sinceramente, estas duas formas de liberdade parecem-me claramente insatisfatórias. Nunca percebi o espanto q se faz em torno da positive and negative liberty.
Prefiro outros obras de Berlin, como o Crooked Timber of Humanity, for instance.
ta ta old chap
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